sábado, 30 de outubro de 2010

Uma Primeira Vez...

Ao me virar o Evandro, ainda sentado no sofá, olhava para mim pesaroso. Havia escutado toda a discussão com o meu pai e fiquei envergonhada, sem entender direito o porquê. Talvez por ele saber muito sobre a minha vida, minhas incertezas, inseguranças e das mentiras nas quais vivi. Dentro de mim, por algum motivo inexplicável, isso me incomodava.


Percebendo meu desconforto com toda a situação, me chamou para os seus braços e me sentou em seu colo novamente. Perguntou se eu queria conversar naquele instante. Eu realmente não conseguia responder, estava entorpecida com as palavras do Anacleto a passarem pelos meus pensamentos incessantemente e apenas o abracei.


Respeitando o meu mutismo disse que iria se despedir dos meus amigos por mim. Meu namorado parecia ler a minha mente, eu não tinha nenhuma vontade de explicar o acontecido, falar com qualquer pessoa e muito menos comemorar meu aniversário. Eu devia a eles alguma cortesia e concordei, com um meneio de cabeça.


Quando ele se levantou e desceu, resolvi entrar no banheiro e lavar as lágrimas já secas em meu rosto. Fiquei um tempo na frente do espelho tentando enxergar algum sinal, ver o que realmente estava acontecendo comigo. Eu me sentia oca, vazia, precisava reencontrar-me.


Não sei quanto tempo passei ali dentro mirando minha face até o Evandro me chamar da porta do banheiro. Eu saí em silêncio e o ouvi declarar, com muito carinho, seu desejo de permanecer ao meu lado, não iria embora até devolver meu sorriso. Eu poderia ficar calada, ele desejava apenas estar comigo e me abraçar afastando a dor de meu semblante. Apesar de manter meu mutismo, me aconcheguei em seus braços, revelando o quanto apreciava seu desvelo.


Ficamos assim por algum tempo. Aos poucos, despertei do meu pesadelo particular e levantei meu rosto para apreciar a face enternecida do meu namorado. Perceptivo me fez sentar em seu colo, de volta ao sofá, mantendo seu olhar preso em mim, esperando ouvir a pergunta em meus pensamentos. Eu estava preocupada com a reação dos meus amigos com a minha saída e finalmente o questionei sobre eles.


Contou que perceberam algo estranho em relação à aparição da Roxanne, eles haviam reparado na semelhança entre nós e compreenderam minha aflição. Manifestaram o desejo de ajudar, contudo tomou a tarefa para si e agradeceu pelo carinho de todos. Neste momento eu reparei, não havia ninguém na República ou estavam todos escondidos em seus quartos, para não nos atrapalhar.


Eu não posso imaginar amigos melhores. Estava envergonhada por todos descobrirem sobre o meu abandono e virem a Anne invadindo o alojamento como se fosse muito natural. Pelo menos não precisaria explicar a situação, ficou clara para todos. Talvez, quando eu soubesse todos os detalhes e não mais me embaraçasse com as circunstâncias, poderia conversar com a Tânia ou com o Reynaldo sobre o assunto.


No entanto, naquele instante, desabafei com o meu namorado, ele ouviu a minha discussão com papai e não havia mais o quê esconder dele. Precisava colocar cada palavra para fora, para me livrar do seu peso em minha mente. Evandro não falou absolutamente nada, só me confortou em seus braços, exatamente como eu precisava.


Depois de pronunciar as frases e perguntas a massacrarem meu cérebro resolvi tomar um banho. Sentia meu corpo sujo e uma compulsão por purificá-lo. Meu namorado me levou até o banheiro no térreo e estaria a me esperar do lado de fora, caso eu precisasse de ajuda. Ao retirar minhas roupas, meu corpo tremia e acabei chorando no chuveiro, antes mesmo de ligar a água.


Quando abri a torneira eu desabei. Chorei convulsivamente, o contato da água sobre a minha pele, parecia finalmente ter despertado todo o meu ser. O sofrimento e a dor que eu senti e sentia pelo abandono da minha mãe retomaram força em meu interior. Contudo a sensação era de conforto, como se de algum modo, aquele banho não limpasse apenas a sujeira, mas também toda a tristeza e angústia.


Não sei precisar quanto tempo fiquei debaixo da água corrente. Ouvi as batidas à porta, porém eu só conseguia prantear ainda mais alto. Tinha praticamente dezoito anos de abandono para lavar e purificar. Do lado de fora do banheiro, Evandro me perguntou se eu estava bem, provavelmente meu choro atravessou as paredes.


Não consegui responder, muito menos notei quando e como meu namorado entrou. As lágrimas caíam de meus olhos e eram arrastadas pela água, afastando aos poucos a minha dor, purificando minhas mágoas, limpando meus sentimentos. Deixei o banho limpar minhas feridas, esperando que as cicatrizasse rapidamente.


Surpreendi-me quando ouvi a voz preocupada do Evandro ao meu lado, só neste momento percebi sua presença e me voltei em sua direção. Ainda chorando, me deixei abraçar por ele por um bom tempo, debaixo da água corrente, sem me preocupar em desligar o chuveiro. Era muito bom contar com seu calor e seu corpo a amparar o meu.


Estava completamente a vontade de encontro ao seu peito, não me lembrava da minha nudez e mal reparei no seu tronco desnudo a me envolver. Simplesmente precisava do aconchego de seus braços e qualquer regra de conduta ou timidez foi esquecida.


Quando me acalmei, eu mantive o abraço, compreendendo finalmente a importância de estar nua de encontro ao seu corpo. Todavia não me senti constrangida pela situação, na verdade eu estava gostando muito do contato. Sentir suas mãos afagando os meus cabelos me fez esquecer o restante da dor.


Evandro me secou igual um pai faz com seu filho, apreciei a sensação de estar protegida e segura pelo seu toque servil e carinhoso. Por fim me envolveu com a toalha exatamente como faria se eu fosse apenas uma garotinha, a enrolou em meu tronco e me carregou em seus braços até o meu quarto.


A esta altura eu só pensava em mantê-lo ao meu lado e afastar todas as lembranças. Apagar da minha memória a visita indesejada da minha mãe. E como sempre, meu namorado compreendia exatamente os meus desejos, em pouco tempo me colocou sobre a cama e deitou por cima de mim. Apenas a toalha envolvendo meu corpo e sua calça a apartar o contato de nossas peles.


Fui beijada com paixão e ardor. Deixei-me levar pelos sentidos e liberei minha mente de todos os medos e receios. Não havia mais nada a bloquear os anseios naturais dos nossos corpos, ele demonstrou durante toda a noite o quanto eu era importante com suas ações, por isso eu falei: sou tua.


Evandro imediatamente compreendeu o significado das duas palavras. Retirou o restante de suas roupas e jogou a minha toalha no chão, mantendo meus lábios selados com seus beijos. Entreguei-me completamente a este arrebatamento a nos envolver.


Todo o seu carinho e desvelo foram determinantes para o meu completo esquecimento dos últimos acontecimentos. Fui envolvida pelo aroma almiscarado do seu corpo, o calor da sua boca de encontro a minha, suas mãos zelosas a acariciar minha pele. A minha primeira vez foi muito além das minhas expectativas, os gestos afetuosos do meu namorado me levaram a encontrar as respostas para os meus anseios.


Ficamos abraçados por algum tempo até notar certa frustração em seu semblante. Questionei-o sobre o motivo de estar assim e ele a princípio não disse nada, só me apertou ainda mais de encontro ao seu peito.


Após alguns minutos acariciando os meus cabelos, comentou o quanto me amava e sobre essa ser a melhor noite de sua vida. Não estava realmente frustrado, apenas preocupado, pesava-lhe a consciência aproveitar-se do meu momento de fragilidade. Detestaria se eu estivesse arrependida depois da nossa experiência.


Eu o tranquilizei dizendo estar bem e ter apreciado cada momento. Entretanto, dentro de mim ainda havia dúvidas sobre o meu arroubo. Uma decisão importante foi tomada por mim principalmente para esquecer a dor. Não me arrependo do que aconteceu entre nós, era inevitável. Talvez, lá no fundo da minha mente, eu me arrependesse do momento no qual resolvi assumir todos os riscos.


Mesmo assim, não havia motivo algum para alarmá-lo com as minhas indecisões, eu acomodei minha cabeça em seu peito e mais uma vez adormeci em seus braços. Momentos antes de me entregar ao sono, tive uma sensação estranha de estar tudo fora de ordem. Como se no fundo todas as minhas decisões daquela noite fossem equivocadas.


Sonhei com o outro homem e desta vez o devaneio era revelador, embora seu rosto continuasse embaçado para mim. Ele caminhava na minha direção, estávamos em um parque e era noite. Sua aproximação levou nossos lábios a se unirem em um beijo singelo, tão puro e repleto de amor quanto o meu primeiro beijo com o Evandro. Uma confiança e felicidade plena invadiram meu ser ao abraçá-lo.


Acordei na manhã seguinte, com lágrimas escorrendo pelas minhas faces, eu estava apavorada com os sentimentos intensos ao beijar um total estranho no sonho. Sentia-me uma traidora ao passar a noite abraçada a um homem atencioso e ao mesmo tempo fantasiar com o beijo de um desconhecido. O pior era acordar com uma sensação incomensurável de vazio, sem compreender exatamente o quê acontece comigo.


Afastei-me de seus braços e sentei-me à beirada da cama, tentando deter o meu pranto desesperado, em vão. O meu namorado acordou e sua preocupação com meu bem-estar me afligia. Em seu semblante enternecido, havia um questionamento, todavia ele apenas me aconchegou de encontro ao seu corpo.


Quando finalmente me acalmei, estava decidida a resolver o assunto com meu pai. Iria conversar com ele e elucidar detalhes, os quais nunca comentou. Ocuparia meu ser com a história do meu abandono. E teria mais tempo para avaliar toda a frustração e o sentimento de culpa a me assolar, após o sonho. Talvez descobrir o motivo de me sentir vazia.


Expliquei ao Evandro a minha decisão de resolver meu problema pendente, quanto a volta de Anne, o mais cedo possível. Ele insistiu em me acompanhar a casa do meu pai, sua preocupação com o meu estado deplorável era evidente. Mais uma vez me senti culpada, por isso mesmo não discuti e aceitei a sua companhia.


quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Imprensa


Jornal Praiano – Domingo, 12 de julho de 1998

Deusa do Rock Nacional se Aposenta!
Ontem à noite, no seu último show da temporada solo, a cantora e compositora Roxanne anunciou sua retirada dos palcos. O seu último concerto na praia lotou a principal avenida a beira-mar da nossa cidade. Foi estimado um público de setecentas mil pessoas amontoadas na areia e apreciando a sua despedida. Sua audiência não esperava por um encerramento prematuro, pois o sucesso da roqueira cresce exponencialmente pelo país. As vozes calaram com o anúncio e lágrimas rolavam pelas faces de todas as idades quando a artista brindou seus fãs com uma música inédita em sua despedida.
Após o show, recebeu os nossos repórteres em seu camarim e explicou estar cansada da vida na estrada. Desejava se assentar em um lugar tranquilo e viver como uma pessoa comum, sem assédio dos fãs e seus passos sendo seguidos pela imprensa. O preço do sucesso era a falta de privacidade e agora ela não se sentia capaz de pagar.
Por fim, ao ser questionada sobre suas pretensões no futuro, explicou estar disposta a ficar nos bastidores, continuar a escrever e compor músicas para outras bandas de rock. Seu timbre se apagou, mas sua voz continuará a habitar o coração de seu público.

Reencontro
Amei você desde o início
Um amor pueril, infantil e inocente
Senti seu calor desde o princípio
Dissolvendo minhas lágrimas de dor e temor
Fomos um por um longo tempo
Sem ao menos supor o que estávamos fazendo
Não tenho arrependimentos destes instantes
Mesmo não sendo fortes para sustentar nosso amor
Continuamos a amar à distância
Tentei encontrar vocês de todas as formas
Embora não tenha perdido as esperanças
Me desesperei muitas vezes
Você cumpriu suas promessas
E cuidou do nosso mais precioso bem
Culpada por não ter encontrado um meio
Enfrento meus percalços com um abraço
Emocionados revivemos nosso amor
Um amor pueril, infantil e inocente
Senti seu calor desde o princípio
Dissolvendo minhas lágrimas de dor e temor
Voltamos a ser um neste instante
E o passado se tornou presente
O agora é para sempre
Reencontrei meu lugar em seus braços
De onde nunca saí
Pois tinha você guardado em meus sentimentos
Aguardando o momento do reencontro
Desejando rever meu bem mais precioso
Almejando amar você de novo.

sábado, 23 de outubro de 2010

Pais & Filha


No meio da tarde, voltei à casa do meu pai. Era a primeira vez desde o meu ingresso na universidade. Anacleto convidou-me para mostrar as melhorias feitas no terreno e eu aceitei sem titubear. Sentia-me culpada por não o ter visitado antes, contudo Tânia havia aberto meus olhos, uma relação sempre tem duas pessoas distintas e cada uma deve fazer sua parte. A distância do meu alojamento até a sua casa é a mesma nas duas direções. Provavelmente, o distanciamento do papai se devia ao embaraço por seu sumiço meses atrás.



Ao me atender a porta notei um brilho de felicidade em seu olhar, o sorriso direcionado para mim desfez minhas apreensões iniciais e sorri de volta. Está incrivelmente belo, esses últimos meses fizeram muito bem a ele. Afastar-se da dança e trabalhar na horta deve ter ajudado em sua reabilitação. Além disso, o cultivo orgânico está começando a dar resultados financeiros, há um mês depositou parte do dinheiro emprestado, em minha poupança.



Eu o abracei saudosa. Apesar de estarmos sempre conversando pelo telefone, senti falta do contato físico, do agradável aroma de terra úmida a exalar do seu corpo, do seu desvelo e olhar amoroso. Aparentemente ele também precisava desta proximidade, pois não mostrava sinal de desejar soltar-me de seus braços. Papai me convidou a entrar e observei o quanto a nossa casa estava mudada. A pintura interna é vibrante, apenas um sofá novo simples e moderno, a madeira aparente nos antigos armários de cozinha, caixas e ripas de madeira que preenchiam o lugar de estantes e mesas de canto.



Não esperava encontrar tudo tão diferente. Percebendo a minha hesitação, meu pai explicou estar arrumando tudo aos poucos. Por fim, disse desejar algumas ideias para decoração e quando eu terminasse a universidade a casa estaria de acordo com as minhas preferências. Fiquei preocupada com a sua observação, eu não pretendia voltar a morar com ele após a formatura, acostumei a ter meu próprio espaço e não vou abrir mão da minha independência no futuro.



Depois de me mostrar toda a reforma da área interna, ele me levou ao quintal para apreciarmos a estufa ampliada. Aproveitou bem o terreno e plantou árvores frutíferas onde originalmente seria nossa garagem. Havia muitas verduras e legumes frescos, mas principalmente temperos e afins em seu cultivo orgânico.



De volta a casa, papai disse qual era sua intenção, me levar a um novo spa no centro da cidade. Ele desejava pagar um tratamento completo para mim. Era um presente de aniversário adiantado. Eu não podia recusar, além de não ser educado, eu estava muito empolgada para conhecer e usufruir desta novidade.



Ao chegarmos, trocamos nossas roupas no vestiário e recebemos robes atoalhados para podermos caminhar até a fonte natural de águas termais, do lado de fora do prédio. Os vapores aqueciam a temperatura externa ao redor da fonte e mergulhamos usando apenas roupas de banho na água quente e estimulante. Apreciamos o conforto por trinta minutos, junto a outros usuários do spa.



Anacleto havia marcado uma hora para mim com o massagista e a esteticista, mas ainda estava cedo. Aproveitamos o tempo extra na sauna, quando ficamos a sós, ele me perguntou sobre o meu namoro com o Evandro, não parecia estar apenas buscando um assunto, e sim apreensivo com meu relacionamento. Averiguando quais as intenções do rapaz, cumprindo seu papel de pai.



Eu desejava a sua opinião e contei sobre as minhas dúvidas, receios e medos. Sendo um homem experiente, pode dizer-me como agir com meu namorado. Expliquei como eu me sinto ao lado dele e nossa conversa esta manhã, retirando os detalhes mais íntimos. Apenas para evitar o meu constrangimento, indubitavelmente papai não se intimidaria com relatos mais ousados.



Entretanto sua resposta foi desanimadora: “Tem certeza que ele não é ‘florzinha’?”
Depois disso, fiquei quieta e não falei mais nada. Aparentemente, para o meu pai as dificuldades entre um homem e uma mulher são resolvidas debaixo dos lençóis, sem nenhuma preocupação com o futuro ou com os sentimentos dos dois envolvidos. Estava frustrada com sua insinuação e por não conseguir uma opinião masculina sobre assunto.



Saímos da sauna a tempo para uma ducha, minutos antes do meu horário com o massagista. Eu sabia da minha tensão, principalmente nos últimos dias. Entretanto não imaginava o quanto o meu corpo estava tenso. Os músculos doloridos foram aliviados do acúmulo de estresse sob as mãos mágicas e milagrosas da Fernanda.



A noite despontava ao ser suavemente acordada pela minha gentil massagista. A madrugada em claro e o alívio das tensões relaxaram também a minha mente e acabei cochilando. Foi um presente precioso e fico feliz por ter aceitado estes mimos ostensivos vindos do meu pai. Coloquei minhas roupas rapidamente e o encontrei aguardando por mim no salão principal.



Papai havia aparado seu cabelo e não havia sinais de sua barba cerrada. Remoçou uns dez anos após sua hora com o esteticista do spa. Eu o elogiei pela aparência jovial e ele a mim por estar ainda mais bela e revigorada após a massagem. Eu o agradeci mais uma vez com um beijo estalado naquele rosto totalmente liso, sem os pelos faciais.



Admirado com a minha apreciação, falou de um encontro importante no dia seguinte. Como nunca comentou sobre suas escapadas, minha expressão de surpresa mista a um olhar interrogador o fez sorrir. De um modo misterioso e sedutor, disse que elucidaria a importância deste encontro, somente após as minhas provas finais. Eu fiquei ressabiada com a notícia e incomodada de uma maneira inexplicável. Tive uma sensação estranha, um pressentimento, nada seria igual para mim após seus esclarecimentos.



Procurei ignorar as sensações e o incômodo, mudando de assunto. Argumentei não haver necessidade alguma de cortar o meu cabelo, não queria mudar o corte prestes a ter um encontro com o meu namorado. Sem titubear, ele foi direto e seco no comentário a seguir: “Bem, Vida, já está na hora de mudar este visual infantil, afinal semana que vem você faz dezoito anos! Seu cabelo não está fazendo justiça à sua beleza!”



A princípio, fiquei desanimada com a declaração dele. Entretanto um homem experiente como papai, podia ser considerado connaisseur* de mulheres. Sabia reconhecer os atrativos e visualizar o potencial de uma mulher só com um olhar. Eu não poderia afirmar estar tratando bem meus cabelos nos últimos meses, tenho sido totalmente negligente com eles.

*Connaisseur é uma palavra francesa e ao pé da letra se traduz por “conhecedor”, no caso acima significa especialista.



Capitulei e aceitei o tratamento. Anacleto conversou com a profissional e os dois decidiram o corte sem perguntarem a minha opinião. Eu estava apreensiva, quanto ao resultado final. Mentalmente eu lutei contra a situação, acreditando na capacidade deles e ao mesmo tempo sem voz ativa para manifestar minha vontade, deixando meus cabelos sob os seus cuidados.



Após lavar, descolorir, cortar, fazer a manicura e passar pelas mãos de um maquiador, finalmente pude apreciar o resultado. Retiraram toda a tinta e meu cabelo voltou ao tom natural, as madeixas negras estão lisas novamente. As pontas batem no meio das costas e a franja sobreposta às sobrancelhas, com uma parte um pouco mais longa emoldurando meu rosto. Como acabamento, uma musse foi utilizada para dar um toque repicado na franja. Estou impressionada e feliz em ter aceitado a transformação. Até a maquiagem parecia perfeita para o meu rosto.



Meu pai sorria impressionado com meu novo visual e pela primeira vez me senti verdadeiramente bonita. Obviamente ele fez questão de enfatizar o quanto eu fiquei ainda mais bela depois de sua sugestão. Eu nem poderia revidar, ele estava completamente certo. Quando perguntei as horas, fiquei muito preocupada. Faltava menos de uma hora para o meu encontro com o Evandro. Eu mal teria tempo de me trocar, se fosse para o alojamento.



Ao expressar meu receio quanto a um atraso, papai tirou um celular do bolso, eu deveria remarcar o encontro na porta da danceteria. Percebendo minha incredulidade, ele disse que compraria um vestido para mim na loja do spa. Seria seu último presente do dia. Estava empolgada com a ideia de fazer uma surpresa para o meu namorado e ainda escolher uma roupa nova. Na vitrina da butique só havia modelos esplendorosos, mal podia conter minha felicidade em vesti-los.



Fazendo questão de me ajudar na escolha, Anacleto procurou e achou um conjunto magnífico, embora não me sentisse suficientemente audaciosa para vestir uma roupa como aquela. Decidido a me convencer do quanto eu era bela e especial, argumentou: “Quando vestir, vai notar que a roupa é perfeita para você.”



Enquanto eu me trocava na cabine, papai trouxe os acessórios combinando com a roupa. Fiquei encantada com seu detalhismo e perfeccionismo, embora ele sempre tenha sido assim, percebi o quanto senti falta de ser cuidada por ele. Eu não era mais uma menininha, entretanto alguns mimos e prestimosidades são preciosos demais para descartá-los.



Afirmando a necessidade de uma mulher bonita ter um guarda-costas ao caminhar pela cidade, meu pai me levou até a porta da boate. Eu ri de sua desculpa para me acompanhar, sua verdadeira intenção era conhecer o meu namorado. Entretanto, o lugar ficava no caminho de casa de qualquer maneira, por isso me apoiei em seu braço durante o percurso e aceitei sua companhia.



Evandro estava na entrada me esperando, pontual como sempre. Ele não sorriu ao me ver ao lado do papai e fiquei insegura quanto a apresentação. Quando os apresentei, seu rosto modificou completamente e notei seu ciúme desvanecer. Realmente, Anacleto não aparenta seus trinta e quatro anos, e após o tratamento no spa, parece quase tão jovem quanto nós. Após travar conhecimento com o genro, ele se despediu de mim e se retirou apressado.



Ao entrar me encantei com o ambiente da nova danceteria, uma DJ comanda a pista de dança no primeiro piso e no segundo fica o bar. Meu namorado me levou direto para a pista e começou a dançar de um jeito delicioso e sedutor, fiquei empolgada com seu modo de mover o corpo insinuando-se para mim. Procurei entrar no seu ritmo único e durante boa parte da noite aproveitamos o som alto e as luzes piscando no compasso das batidas eletrônicas.



Quando cansamos, Evandro me ofereceu uma bebida e sentamos ao bar até saciarmos nossa sede. Ao invés de voltarmos a pista lotada, sentamos em um sofá aconchegante e aproveitamos o canto escuro e isolado para trocarmos beijos quentes, esquecidos do movimento a nossa volta; embalados pela música ensurdecedora, o calor de nossos corpos e da bebida alcoólica.



Voltamos quase ao amanhecer e agradeço meu pai pelo presente, provavelmente eu estaria ainda mais cansada se não fosse o tratamento no spa. À porta da República meu namorado se despediu de mim com um beijo arrebatador. A noite parecia esplêndida e perfeita. Quando se afastou, eu olhei para ele desejando observar seu caminhar até sumir do horizonte ao virar a esquina.



No entanto, ele se virou para mim e pude perceber sua tensão ao comentar: “Eu gostava tanto do teu cabelo! Não gostei que tu o cortaste sem me perguntar nada antes.”
Depois do comentário infeliz, eu só o olhei por alguns segundos, surpresa com sua frase. Magoada com seu procedimento, virei sem responder e entrei no prédio, fechando a porta em sua cara.



Na manhã de domingo, saí de meu quarto e avistei Emília com o jornal em suas mãos e o rosto coberto de lágrimas. Aproximei-me, procurando descobrir o quê estava acontecendo. Pensando ser alguma notícia muito ruim para afetar minha amiga daquele modo. Ela me mostrou a primeira página com lágrimas escorrendo pelas suas faces.



Ao ver a matéria, tive vontade de rir, em respeito ao seu óbvio sofrimento, me controlei. A reportagem falava sobre o último concerto de uma roqueira na noite passada e o anúncio de sua aposentadoria inesperada. Havia várias especulações sobre as motivações da cantora e compositora, entretanto sua declaração foi simplesmente estar cansada da vida na estrada, por isso passaria apenas a compor músicas para outras bandas.



Emília notou meu descaso e replicou indignada sobre a Roxanne ser um ícone de toda uma geração, a nossa. Não conseguia acreditar na minha indiferença em relação à matéria. Eu escutei algumas de suas músicas e de sua antiga banda, principalmente desde a minha entrada na Universidade; meu primeiro beijo foi ao som da sua voz. Todavia eu sempre preferi os clássicos, nunca fui fã ardorosa de um músico e sim de sua música. Por isso apenas abracei minha amiga procurando retratar-me e lhe ofertar consolo.



Mais tarde, Evandro apareceu para se desculpar pelas palavras mal expressadas no final da noite. Explicou ter ficado irritado por notar os olhares de diversos rapazes para mim, na noite anterior e ter culpado o meu novo estilo, além de sentir falta das madeixas mais longas e cacheadas. É desconfortável para mim observar o quanto ele é ciumento, principalmente por eu ter olhos somente para ele. Fiz questão de elucidar o fato, ele sorriu e nos beijamos esquecidos das pessoas a nossa volta.



Conversamos mais alguns minutos acomodados no sofá e decidimos nos afastarmos durante a semana para podermos estudar sem interrupções. Após sua saída me dediquei com afinco a minha sonata, para apresentá-la no estúdio, valendo a nota final. Toquei por horas ininterruptas durante toda a tarde e após o jantar deitei em minha cama disposta a revisar a matéria para as provas.



Durante a semana encontrei o meu namorado algumas vezes no pátio da reitoria e almoçamos juntos na maioria dos dias. As provas finais passaram rapidamente e não senti falta da presença constante do Evandro, ocupando meus pensamentos apenas com as matérias ainda restantes e principalmente ajustando um acorde na minha música. Madu continuava interessada em se apresentar comigo e me acompanhou facilmente nesta pequena mudança.



A semana passou rapidamente, fiz as provas com facilidade e no dia do meu aniversário, meu namorado surgiu para o jantar com meu presente em suas mãos. Ganhei um celular com a seguinte explicação: “Assim posso falar contigo, mesmo quando tu não estiveres em casa.” A refeição transcorreu lentamente, pois nenhum de nós estava disposto a se separar.



Na manhã de seguinte, fui cumprir minha última obrigação do semestre. Encontrei com a Professora Catarina e a Maria Dulce no estúdio da Universidade para executar a música na qual trabalhei todo o período. Ela me esperava ansiosa, desejava gravar nossa performance, pois acreditou no potencial da sonata, quando nos ouviu no mês anterior.



Ao final da minha execução, ela me surpreendeu com suas palavras: “Anita, você sabe o quanto admiro o som do seu violino; hoje além da sua interpretação de extrema sensibilidade, você demonstrou sua inata capacidade para a música. É a melhor sonata que ouvi este semestre! – Olhando também para Madu, perguntou – Vocês poderiam fazer uma apresentação durante o festival de inverno? Está em cima da hora, mas a interpretação está perfeita, não é preciso mudar nada!”



É uma oportunidade única. O Festival de inverno ocorre durante toda a semana seguinte ao fechamento das aulas, os melhores intérpretes e compositores da Escola de Música se apresentam no salão nobre da Reitoria. O diretor da Escola escuta e participa de todas as apresentações. Violinista renomado, ele é um excelente intérprete dos clássicos e uma vez por semestre faz uma apresentação no auditório. Tive a oportunidade de ouvi-lo tocar “Partitia in E” de Bach e fiquei encantada com a sua interpretação.



Além disso, ele acreditou no meu potencial, me convidando para estudar aqui. Eu aceitei sem hesitação o convite. Agradeceria ao diretor fazendo o meu melhor, demonstrando com minha música o quanto aprecio o seu investimento em minha carreira. Nós duas pretendíamos passar a próxima semana como simples espectadoras do Festival e sem ao menos aspirar por uma apresentação, conquistei um lugar tão disputado entre os melhores da Universidade. Eu estou eufórica com a oportunidade e não poderia desperdiçá-la e minha amiga concordou em me acompanhar, mais uma vez.



Liguei para o Evandro ao sair do Estúdio, desejava compartilhar a novidade com ele. A princípio, não me pareceu muito entusiasmado, entretanto veio jantar comigo e trouxe uma garrafa de champanhe para comemorarmos o meu sucesso. Ele pediu desculpas por não estar de bom humor ao me atender e acabou capitulando, quando percebeu o quanto esta apresentação é fundamental para o meu futuro como musicista.



Após o jantar, fomos para o meu quarto namorar. Era a primeira vez, após nossa conversa esclarecedora, mesmo assim meus receios ainda existiam. Ele continua perceptivo em relação às minhas dificuldades, se preparou para levantar e sair como de hábito. Eu praticamente implorei para evitar sua saída. Confuso com meu pedido, expliquei desejar dormir aconchegada ao seu corpo, para me sentir mais confiante ao seu lado.



Meu namorado aceitou, pois acredita ser uma boa ideia para fortalecer e amadurecer nosso relacionamento. Embora salientando o quanto seria torturante dormir comigo em seus braços e não fazer nada. Após muitos carinhos ousados, beijos e abraços acabei adormecendo sobre o seu peito, apreciando o perfume orvalhado tradicional, misto ao odor almiscarado de sua pele.



Naquela noite meus sonhos não foram com ele. Alguém se iluminava em sintonia com o som do meu violino, ao longe, não pude distinguir suas feições. Meu coração parecia pular do peito com a visão indefinida desta pessoa. Acordei como se algo me faltasse, como se uma parte do meu ser estivesse distante de mim. Evandro acordou com minha aflição e procurou acalmar-me com palavras de carinho e consolo, envolvendo meus ombros, até eu relaxar completamente em seus braços.



Eu não o vi sair pela manhã, quando voltou à tarde, explicou não ter tido coragem de me acordar. Principalmente por causa do pesadelo da noite anterior. Eu não esclareci o conteúdo do sonho, afinal não foi aterrador. Na realidade, eu me apavorei com a sensação pós-sonho e preferi não desfazer o mal-entendido.



Evandro me ajudou a arrumar uma mesa para acomodar o bolo e os salgados no refeitório do alojamento. Eu havia comprado refrigerantes e ele trouxe alguns vinhos para a comemoração do meu aniversário. Pouco depois do anoitecer, os companheiros de prédio estavam no salão apreciando os petiscos e as bebidas, ou simplesmente dançando, enquanto o restante dos convidados começava a chegar.



A grande surpresa foi a vinda do meu pai com uma mulher. Eu estava chocada com a sua presença. Uma sensação de déjà vu muito forte, como se eu a conhecesse. Um aperto imenso no meu coração, como se parasse de bater por alguns segundos. E dentro de mim uma pergunta insistente martelava em minha mente: Por que papai traria esta mulher aqui?



Ouvi a Emília gritar: “É a Roxanne!” Seu brado foi seguido de vários murmúrios de assentimento. Contudo este não era o motivo dela me parecer tão familiar. Provavelmente seus olhos azuis-esverdeados e brilhantes na minha direção me alertavam algo mais. Obviamente, notei seus cabelos escuros e a sua tez tão incomum quanto a minha. Eu sabia quem ela era, porém não desejava acreditar em minha intuição.



Respirei fundo, procurando sorver coragem no ar para encarar Anacleto sem discussão. Recebi seu abraço procurando ignorar toda aquela situação constrangedora para mim. Buscando encontrar um motivo para ele levar esta mulher até o meu alojamento e participar da minha primeira festa de aniversário.



Ela tinha uma grande motivação para vir, queria realmente me conhecer. Todavia eu não desejava falar com ela, olhar para ela ou conversar com ela. Papai ignorou o pedido implícito no meu olhar e nos apresentou com um sorriso no rosto: “Vida, esta é a Anne, sua mãe!”



Quando ele pronunciou a palavra, ouvi um suspiro exasperado do meu namorado logo atrás de mim. Só então notei sua atenção na conversa durante todo o tempo. Fiquei sem ação, quando ela veio até a mim com um sorriso radiante e seus olhos brilhantes beijando minha face com leveza. Falou o quanto eu estava linda ao se afastar ligeiramente, sua voz rouca e suave preencheu meus ouvidos, no entanto, não escutei mais nada.



Via seus lábios se movimentarem, a aproximação do meu pai e novas palavras saíam de sua boca. Porém eu só ouvia sua voz grave repetindo: “sua mãe!” Olhei para o lado, todos estavam conversando e se divertindo, todavia me sentia completamente deslocada. Como se tudo estivesse acontecendo em outro lugar e tempo. Como se um filme passasse a minha frente e eu fosse apenas a espectadora.



No meu rosto permanecia um sorriso congelado. Evandro percebeu minha aflição e me resgatou, puxando a minha mão e me conduzindo até a sala do pavimento superior. A esta altura eu senti o calor das lágrimas prestes a transbordar dos olhos e o sorriso se desvanecer.



Não percebi quando ele me sentou sobre os seus joelhos dizendo palavras de conforto e carinho. Meus olhos estavam embaçados e eu busquei compreender algo de sua fala, contudo só notei o quanto foi reconfortante ter o seu colo para me amparar. Procurando secar minhas lágrimas com suas frases a soarem sem sentido.



Quando finalmente só restaram as marcas do pranto em meu rosto, estava cansada e mal conseguia ficar sentada em seu colo, as forças me abandonaram e minha energia se esgotou. Deitei minha cabeça sobre as suas pernas esperando fechar os olhos e acordar deste pesadelo.



Não cheguei a manter meus olhos fechados por mais de alguns minutos, ouvi a voz do Anacleto a me chamar. Desejava explicar-me tudo, Evandro não se pronunciou e eu me levantei disposta a confrontar meu pai, olhando em seus olhos e buscando compreender sua motivação para trazer aquela mulher de volta a minha vida, após dezoito anos de abandono.



Anacleto explicou haver um engano na minha interpretação dos fatos. Ele havia sido o culpado por nunca me contar a verdade. Em sua dor, mesquinhez e raiva, não se pronunciou sobre o real motivo do afastamento de Anne. E só naquele momento percebeu o quanto o seu silêncio prejudicou o meu julgamento. Ela foi obrigada a me deixar sobre os cuidados dos meus avós paternos. Quando conseguiu se estabilizar financeiramente para brigar por mim, ele havia fugido comigo para Colina Formosa, sem deixar rastros.



Durante anos eu acreditei não ser boa ou bonita o bastante para agradar minha mãe e por este motivo fui abandonada. É um tanto infantil da minha parte, porém realmente me sentia assim. Para mim a impossibilidade de crer naquela história era bem mais profunda e densa. Tinha raízes na minha autocomiseração e na ausência de autoconfiança. Olhei para o meu pai e vi a seriedade em seu semblante.



Sua história não parecia crível, mesmo assim, ele sempre evitou o assunto quando o questionava. Ao me pedir para pensar com calma em toda a história e o procurar em casa na manhã seguinte, pois estava disposto a me contar tudo com detalhes, acabei acreditando. Ele desejava reparar seus erros esclarecendo todos os fatos e eu iria escutá-lo. Se havia algo em meu passado desconhecido e encoberto por sombras, eu precisava trazer à luz.



Fiquei um tempo parada ali a me perguntar por quê. Sua aparição dezoito anos após o abandono era um tanto surreal e ao mesmo tempo assustadora. No entanto, sei que as coisas não acontecem por acaso. Qual era o aviso enviado para mim? Eu não conseguia entender, não naquele instante. Eu sentia uma angústia arrasadora, a dor era tão profunda quanto a música em meu coração.






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