sábado, 27 de novembro de 2010

Dúvidas e Decisões

Tivemos um sono muito agitado durante a noite e acabamos por acordar antes das oito. Acredito realmente ter contribuído para o Evandro se sentir desanimado naquela manhã. Afastei-me de seu corpo logo ao acordar e levantei-me apressadamente para me trocar.


Quando terminei de me vestir, ele estava de pé e pedi para se retirar. Eu precisava de espaço e não poupei palavras, precipitei-me e provavelmente fui um tanto grosseira. Entretanto sua insistência, desejando o meu retorno para os seus braços naquela manhã, me atormentou. Eu não queria estar com ele enquanto as dúvidas em relação aos meus sentimentos assolavam minha mente.


Meu namorado ficou muito aborrecido e notei o quanto o magoei com meus receios. Mesmo assim ele respeitou meu pedido e se afastou nos dias seguintes. Contudo, ligava todos os dias para dizer o quanto desejava estar ao meu lado e me encontrar. De qualquer modo, me sentindo culpada ou não, a distância era necessária para eu descobrir as respostas para a minha hesitação.


Eu precisava falar com alguém sobre as minhas emoções tumultuadas. A primeira pessoa com quem me abri foi a Emília. Contei sobre os sentimentos conturbados em relação ao Art e da minha dificuldade em compreendê-los. Ela olhou para mim séria e afirmou que eu estava apaixonada. Por fim concluiu ser melhor terminar com o Evandro e ir viver esta paixão.


Olhei para ela aflita, não consegui aceitar suas palavras. Perguntei-lhe como eu poderia apaixonar-me por outro, com um namorado tão dedicado e carinhoso ao meu lado. Minha amiga revelou o quanto gosta do Arthur ao comentar: “Como você pode não perceber um cara tão legal como o Art? Ele é inteligente, sensível e louco por você. Todos aqui o adoram, por que você não poderia se apaixonar por ele?”


A minha dúvida persiste, não desejo apaixonar-me por nenhum outro. Continuo a evitar tanto o Evandro, quanto o meu companheiro de alojamento. Passei a praticar no novo estúdio onde tenho aulas com o Diretor da Escola de Música e agora meu professor. Quando estou no alojamento me tranco em meu quarto. Contudo não almejo afastar-me justo de quem sempre esteve ao meu lado, a culpa pela minha hesitação deixa-me arrasada.


Fui ao encontro das meninas no Três Pinheiros, como de hábito, na quarta à noite. Madu estava a minha espera e Francisca viria direto de sua aula em alguns minutos. Pela primeira vez conversei sobre meu namoro e dúvidas com ela. Ao terminar minha explanação minha amiga afirmou sem titubear: “Qual é a tua dúvida? Tu tens medo de terminar com o Evandro?”


Mirei seus olhos sinceros e ansiosos por minha resposta. Todavia emudeci com sua segurança na questão. Notando minha inquietação, comentou: “Por que tu não podes simplesmente terminar com o Evandro e viver esta paixão? É óbvio que teu namoro já deu o que tinha que dar. Procures teu namorado e termines logo com ele.”


Madu iria continuar, entretanto a chegada da Fran dispersou nossa atenção. Eu não sei qual resposta lhe dar, nem desejo terminar meu namoro por algo efêmero ou uma quimera como a paixão. A vinda de nossa amiga foi providencial, e resolvi encerrar o assunto, estimulando Francisca a contar suas novidades.


Resolvi buscar a opinião de um homem e bati na porta ao lado. Felipe atendeu solícito, ouviu toda a minha confusão e confissão com atenção. Algo incomum para ele, mas me pareceu muito interessado em me ajudar. Ficou quieto, apenas me olhando durante um bom tempo, me deixando apreensiva pelo seu parecer da questão.


Por fim me deu uma resposta deveras intrigante: “Eu nem vou falar sobre como você está se sentindo. Vou falar sobre o Art ser um cara muito melhor que esse seu namorado, ele se dá bem com todo mundo aqui. Enquanto esse carinha, nunca quis fazer amizade com a gente, vem aqui quase todas as noites e mal fala com a galera. Nunca tentou se aproximar dos seus amigos. Se você estivesse com o Art, iríamos poder sair juntos, eu, a Emi, você e ele. O Evandro quer você só para ele!”


Eu fiquei chocada com a colocação do meu amigo. Não havia percebido o quanto o meu namorado me mantinha isolada de todos. Eu me afastei das pessoas e busquei corresponder às suas expectativas. Pensando bem, era realmente isto que acontecia. Quando está comigo mal deixa os outros se aproximarem. Até estranhei sua solicitude com o Arthur, ao conhecê-lo.


Abracei o Felipe e agradeci pelas palavras sinceras. Entretanto eu ainda estava amargando sua honestidade, era ainda mais difícil orientar-me. Todos indicavam apenas um caminho: Art. Eu relutava em mudar de direção, afinal eu estava bem com o Evandro. Apesar de tudo, eu finalmente me sentia segura ao seu lado.


No dia seguinte encontrei a Tânia estudando no refeitório e não resisti. Sei o quanto ela está enrolada com seus trabalhos... Todavia precisava de sua ajuda. Sentei a sua frente e comecei a contar sobre o meu dilema. Ela já conhecia uma parte, porém tinha o ocorrido na boate a comentar, além das palavras de nossos amigos. Desejava saber sua opinião em relação ao meu namoro.


Ela olhou para mim assustada, acabei fazendo com que largasse os estudos. Do Felipe, ela comentou ser apenas a opinião dele sobre o meu namorado, o mais importante na questão eram os meus sentimentos. Eu realmente estava apaixonada, ou apenas atraída? Se eu estava apaixonada pelo Arthur, meu amor pelo Evandro havia terminado? E finalmente, se eu sentia medo de me envolver com o loirinho e perder o atual namorado? Por quê?


Como sempre, minha amiga tocou nos pontos importantes das minhas dúvidas. Eu não tinha certeza sobre meus sentimentos em relação ao Arthur. Percebia a atração profunda entre nós, algo eletrizante e empolgante, entretanto seria realmente isto o amor verdadeiro ou o sentimento de ser mimada e protegida, a segurança de me sentir amada e desejada pelo Evandro? Eu não tinha a resposta desta questão. E sim, tinha muito receio de fazer a escolha errada.


Tânia olhou para mim e disse: “Minha amiga, só você pode descobrir e dizer quem é o homem certo para você. Mas lembre-se, é ainda muito jovem e tem uma vida pela frente, deixe as coisas fluírem e acontecerem naturalmente. Não fique se remoendo antes de tomar uma decisão. Faça a sua parte, viva seus momentos com o seu namorado, continue a tocar a sua bela música e o que tiver que ser, será!”


Ela estava certa. Voltei a tocar, decidi não mais me esconder e cuidar da minha vida. Como sempre as palavras da minha amiga me acalmaram e me levaram a entrar novamente em sintonia com o meu verdadeiro eu e objetivo: a música. Romance, relacionamento, paixão e atração eram muito pouco em relação aos sentidos despertados pela música em meu ser.


Neste mesmo dia, após quase duas horas de comunhão com meu violino, vi o Arthur disfarçadamente chorando. Fiquei angustiada com aquela visão. Ele notou, pois soltei um pequeno agudo errando uma das notas, deu a volta por mim e subiu as escadas silenciosamente. Pensei em largar o violino e correr atrás dele. Porém eu precisava mais da minha música, não podia deixar suas emoções me influenciarem de tal forma.


Terminei minha prática mais cedo, não consegui afastar meu pensamento do Art. E pela primeira vez em dois meses, entrei em seu quarto. Não me espantei apenas com a decoração, completamente destoante do padrão dos outros quartos do alojamento; nunca imaginei, encontrar no seu aposento tantas flores e móveis de cores claras.


Mesmo assim, isto era pouco perto da cena que eu estava presenciando: Ele estava em meditação profunda e flutuava acima do chão. Eu mal podia acreditar nos meus sentidos, eu estaria mesmo vendo coisas inimagináveis? Talvez por admirar seu torso nu e aquele abdômen totalmente definido... Só isto era uma visão do paraíso, quase uma miragem! Ele não é alto e muito menos musculoso em excesso, mas exemplificava o estilo de beleza masculina a me atrair.


Nem percebi quando se aproximou de mim perguntando o que eu desejava. Minha garganta ficou seca e mal conseguia desviar os olhos daquele abdômen. Tentei responder, mas saiu apenas um sussurro: Fiquei preocupada com você!


Ele chegou perto de mim e disse: “Eu estava com saudades de ouvir a sua música, senti muita falta. Enquanto tocava, eu percebi o quanto estava confusa e fiquei triste, pois sei que estou contribuindo para isso de alguma forma. Não quero ser um problema para você, anjo!”


Toda aquela proximidade me afetou, mesmo assim não pude aceitar seu gesto de carinho. Eu não queria sucumbir a vontade louca do meu ser de me aconchegar a ele, sentir seu corpo junto ao meu e deixar o magnetismo entre nós crescer. Receava concretizar meus anseios, não podia ceder aos meus desejos, eu tenho um namorado!


Saí correndo daquele quarto perfumado, aconchegante e sedutor como o seu dono. Fui direto para o meu e me tranquei. Ele não veio atrás de mim desta vez, suas palavras eram sinceras. Arthur preferia se afastar e dar-me espaço para compreender minhas emoções conturbadas.


Liguei para o Evandro, buscando as palavras e o carinho os quais necessitava naquele momento. Ele ficou surpreso com a minha ligação, pois era a primeira vez naquela semana que eu o procurava. Por fim perguntei ansiosa se poderíamos conversar. Ele se esquivou, disse estar ocupado e só me encontraria após o jantar.


Eu me despedi um tanto inconformada. Contudo, o evitei por uma semana, ele tinha todo o direito de ter outro compromisso e não estar a minha disposição. No entanto, saber disso não me fazia sentir melhor. Eu precisava sair daquele lugar. Resolvi caminhar até a casa da minha mãe e refletir sobre os acontecimentos.


Mamãe me recebeu de braços abertos e logo ao entrar eu perguntei se poderia usar seu violino. Anne percebeu minha aflição, entretanto não me questionou, afirmou sobre a casa também ser minha, afinal eu recebi uma cópia da chave em minha primeira visita. Terminou beijando a minha face comentando estar a minha disposição se eu precisasse conversar.


Subi correndo, aspirando deixar a música me absorver e esquecer esta torrente de sentimentos conflitantes em meu ser. Ao empunhar o instrumento, eu consegui deixar as emoções fluírem através do som e liberei todas as tensões a me causarem tantas dúvidas esta semana.


Minha mãe seguiu atenta em meu encalço e aos meus movimentos, não sei por quanto tempo ficou ali só me observando. Ela notou todos os meus sentimentos expressos através da música e se emocionava verdadeiramente com a história contada pelas notas e acordes do violino.


Quando finalmente meu ser se aquietou, mamãe me envolveu em seus braços e me conduziu até o sofá, onde deitou minha cabeça sobre o seu colo. Nunca imaginei o quanto esta mulher, até pouco tempo uma completa estranha, conseguia estimular o melhor dentro de mim.


Após alguns minutos, sentei ao seu lado e ouvi sua voz rouca perguntando sobre o motivo de buscar refúgio ali. Expliquei as emoções contraditórias, a atração pelo Art e toda a história. Principalmente a dúvida amarga dentro de mim. Eu não sabia como lidar com os meus sentimentos em relação a ele, mas também não conseguia abdicar do meu envolvimento com o Evandro.


Anne me perguntou com qual dos dois eu me via casada e feliz, com qual dos dois eu gostaria de ter um filho e educá-lo. Comentou sobre o seu casamento com o Ricardo, ela nunca conseguiu desejar ter um filho com ele e isso foi determinante para o término do seu relacionamento. Embora todo mundo pensasse que a causa do rompimento foi a sua traição, o casamento havia terminado muito antes; quando ele voltou da clínica de reabilitação.


Fiquei olhando para a minha mãe e tentando absorver aquelas palavras. Eu desejo formar uma família com o Evandro ou é apenas um namorado com quem me acomodei? Sinto uma atração inegável pelo Arthur, assim como admiro o seu modo de ser, altruísta, gentil, sensível e humilde. Entretanto, eu não me visualizo vivendo ao seu lado. Será por insegurança ou desamor?


Mamãe riu e falou sobre a minha decisão não precisar ser feita naquele instante, todavia insistiu sobre eu mesma ter esta resposta dentro de mim, bastava eu parar de pensar e me preocupar com as dúvidas. A resposta surgiria simplesmente, no momento certo.


Nós conversamos algum tempo sobre música e isso ajudou a dissipar meus receios. Quando anoiteceu, papai entrou na sala e nós acompanhamos sua chegada com alegria. A esta altura ele nem deve mais dormir em casa. Nem sei o que estão esperando para morarem juntos de uma vez.


Já estava tarde e eu precisava ver o Evandro para ter certeza da minha decisão. Agradeci a minha mãe pela tarde maravilhosa e esclarecedora. Ela riu e disse não ter feito nada por mim, fui eu com minha música e presença a tornar sua tarde muito mais agradável. Por fim, me despedi dos dois e desci as escadas sozinha, deixando-os à vontade.


Saí de lá pensando o quanto foi decisiva a conversa com Anne. Precisava encontrar meu namorado e resolver nossos problemas. Já me disseram uma vez: “A verdade liberta”. Eu iria colocar à prova esta máxima. Precisava contar-lhe sobre a minha provação em relação ao Arthur. Deixar claro a intensidade desta atração e sua reação seria o meu linimento, a cura para este desejo.


Em toda minha vida eu nunca recebi atenção dos rapazes. O primeiro por quem realmente me apaixonei e para minha sorte retribuiu, foi o Evandro. Tudo aconteceu gradativamente entre nós, de início apenas conversávamos por horas no telefone. Eu o conheci pouco a pouco e a cada dia fiquei mais envolvida.


O Art apareceu como um furacão, fazendo um estrago na minha vida, derrubando minhas defesas e crenças. Existe uma química intensa entre nós. No entanto, atração não é amor. Temos a música em comum e este desejo intenso. Mesmo assim, tenho a sensação de estar em contato com um ser de outro mundo, irreal de tão perfeito.


Amor é um sentimento profundo, preenche o nosso ser de confiança, júbilo, conforta e apazigua. O que estraga mesmo são nossos pensamentos mesquinhos e as dúvidas, sempre presentes, pois somos apenas humanos. O companheirismo e a amizade são peças fundamentais para um relacionamento duradouro. Esta é a chave para o verdadeiro amor.


Posso contar com Evandro, ele é meu companheiro e amigo. Sempre me apoia nos momentos difíceis. Temos nossos atritos, principalmente por causa do seu ciúme e sentimento de posse, todavia acredito ser seu modo de expressar o amor. Incomoda-me muito mais seu desinteresse pela minha música, era o momento de conversarmos e acertamos todas as nossas diferenças.


Fui até seu alojamento decidida a encontrá-lo mais cedo, não queria esperar muito para resolver o que estive adiando por dias. Precisava da sua presença reconfortante para ter certeza dos meus sentimentos. Olhar dentro dos seus olhos verdes e me sentir envolvida pela magia do seu amor.


Libertar-me do desconforto de me sentir atraída por outro homem. Era torturante esse sentimento, como se eu estivesse traindo meu namorado com meus pensamentos. Este era o motivo de estar tão confusa e angustiada. Quando toquei a campainha comecei a me preocupar. Eu deveria ter avisado sobre minha vinda.


Fran veio até a porta e ao me ver através do vidro, ficou óbvio o seu choque. Senti um receio palpável como se algo estivesse muito errado. Meu coração resolveu disparar e minhas mãos começaram a suar frio. Alguma coisa não se encaixava e naquele instante não conseguia compreender o que era.


quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Imprensa


Jornal da Capital – Sábado, 6 de setembro de 1998
Segundo Caderno

A Banda LP Mobiliza um Novo Público
Após a revelação bombástica sobre a homossexualidade do baterista e sua união de dezoito anos, a banda conquistou um novo nicho na sociedade. Agora toda a comunidade GLS passou a procurar pelos antigos CDs e agitar os espetáculos do grupo. Quando a musa da LP saiu para seguir carreira solo há um ano atrás, a expectativa não era muito promissora. Mas, a voz potente de Ricardo Fernandes se fez ouvir, traduzindo suas letras com perfeição e mantendo cativos boa parte de seus antigos fãs. Mesmo assim, os primeiros shows da banda não alcançaram sua antiga marca de audiência. Quando Matheus Fernandes “saiu do armário”, toda uma nova legião de admiradores se levantou em sua defesa.
O encerramento da turnê programado para o final do mês de novembro, no maior estádio da cidade, já tem seus ingressos esgotados. O promotor da banda divulgou ontem à tarde uma nota à imprensa: “Não esperávamos tanto sucesso nesta primeira turnê, mas estamos conversando com as maiores casas de espetáculos da cidade e procurando um local para realizar mais três shows no final da temporada. Não desejamos deixar o público sem a oportunidade de ouvir o mais novo sucesso da Banda, ‘Infinito Amor’.”

Infinito Amor
Amei demais e pequei em seu sustento
Amei demais e usufrui de todo amor infinito
Amei demais e conquistei apenas o suplemento
Amei demais e perdi o meu verdadeiro alento
Quantas vezes perdi a noção do tempo e espaço?
Programei emoções e dispersei sentimentos
Afastei você com meus delírios sem sentido
Procurei por desejos proibidos
Assim mesmo estava você, pronta a me receber
Desprezei seus desejos, desconheci seus anseios
Queria manter cativa dos meus sonhos
Ardia de desejo por uma inatingível deusa
Semeei discórdia, quando precisava de amor
Arrogante todo o tempo menosprezei os valores
Esmaguei os muros, derrubei fronteiras
Persegui meu intento, mas não a contento
Esperava mais e doei menos
Um infinito amor senti, sem expressar
Amei demais e me perdi em tormentos
Amei demais e lamentei meus momentos
Amei demais e esqueci dos seus sentimentos
Amei demais e me larguei em sofrimentos
Infinito amor hoje não mais o desejo
Apenas sigo feliz pelo prazer de cada instante
A alegria de por um tempo
Em algum lugar neste espaço
Ter encontrado o infinito em seu abraço
O amor constante em seu desembaraço
O vibrante ser em seus belos traços
Sigo flutuando com todo seu olhar, mesmo distante
Só posso amar infinitamente
A mulher forte e deslumbrante
Amei demais e estremeci sendo alimento
Amei demais e voei em cada divertimento
Amei demais e pulsei sem desapontamento
Amei demais e sonhei com um desenvolvimento
Se amar é infinito, o infinito é amar você.


sábado, 20 de novembro de 2010

Aproximação


Evandro me fez atravessar a rua, praticamente correndo, mal tive tempo de me despedir da Madu. Eu ainda estava confusa em relação aos meus sentimentos e o ocorrido durante o recital, porém me deixei levar pela onda de desejo a arrebatá-lo. Não foi perfeito o encontro dos nossos corpos, eu estava absorta demais, mas foi gratificante. Por fim meu namorado me abraçou como se não quisesse se separar de mim nem durante o sono.


Na manhã de sábado, deixei o Evandro dormindo e um bilhete explicando estar na casa do meu pai. Não o acordei para não convidá-lo, eu queria distanciar-me um pouco e me distrair das preocupações em relação aos sentimentos intensos experimentados na noite anterior.


Quando cheguei, papai expressou seu desejo de conversar comigo. Ele começou dizendo o quanto a minha música se tornou “magnífica” e eu fiquei admirada com suas palavras. Depois me perguntou sobre o Art, intrigado com seu beijo logo após o recital. Eu sabia muito bem aonde pretendia chegar com aquela questão, provavelmente havia notado minhas emoções conturbadas após sua aproximação.


Respondi com os fatos reais: É um novo morador do meu alojamento, ele sempre me observa durante a minha prática e gosta muito da música do meu violino. Todavia, omiti a parte dos sonhos, da forma como me espreitava e da raiva despertada em mim quando o conheci... Não estava disposta a falar sobre isto com ninguém, pelo menos até eu compreender meus reais sentimentos em relação ao Art.


Apesar de muito introspectivo, como eu, papai é muito perceptivo e disse ter certeza do rapaz estar gostando sim, mas não era só da minha música. Notei o quão evidente era seu interesse por mim. Ele nunca fez questão de esconder, nem mesmo do meu namorado. Contudo se comprometeu a ser apenas meu amigo e por isso aceitei sua companhia. Eu me pergunto se não foi um erro aceitar sua amizade.


Preferi calar-me e não comentar mais nada a respeito com meu pai. Ele sempre compreende meu silêncio e reconhece minhas motivações; preciso de tempo e espaço. Sem interferir e respeitando o meu distanciamento, comentou: “Acho que já está na hora, sua mãe nos convidou para almoçar. Anne quer mostrar a casa nova para você.”


Fomos a pé, afinal em Colina Formosa nada é tão distante assim. Em frente à construção, eu parei e perguntei ao papai se era realmente ali. Era uma casa grande e bonita, entretanto não se parecia em nada com uma mansão de gente famosa ou estrelas de rock. Ele riu e comentou sobre eu ter uma impressão muito errada da minha mãe.


Anacleto tocou a campainha, porém não esperou abrirem a porta, entrou usando uma chave tirada de dentro do seu bolso. No interior, a mobília era de bom gosto e a decoração não era tão moderna quanto eu havia imaginado. Entretanto havia um mordomo nos esperando para nos conduzir a cozinha, onde Anne preparava o almoço. Eu realmente não sabia o que pensar sobre ela, as mensagens estavam completamente truncadas.


Tivemos uma refeição muito agradável e apesar de exótica, estava deliciosa. Eu nunca havia experimentado comida japonesa antes, contudo apreciei e me acostumei rapidamente com os novos sabores. Mamãe parecia muito feliz por me receber em sua casa e meu pai, muito à vontade ali. Conversamos sobre o meu recital e a sua facilidade de adaptação mesmo em uma cidade tão pequena quanto a nossa.


Após o almoço, fui levada a conhecer todos os cômodos e adjacências. No quintal havia uma grande estufa com horta, da qual meu próprio pai era o responsável, além de um grande pomar. Nos fundos havia uma “pequena” construção ao lado de uma grande piscina, e um jardim com lago artificial do lado direito complementavam o exterior bem cuidado.


Ao lado da cozinha havia um escritório aconchegante com um computador de última geração. No segundo andar havia duas suítes enormes, a de frente estava completamente vazia e a dos fundos foi mobiliada com primor, exibindo uma lareira. No terceiro andar havia um estúdio de música, com barra de balé e uma guitarra. O mais impressionante: tinha um violino!


Minha mãe se aproximou e disse: “Comprei o violino para nós duas, eu precisava voltar as minhas origens, pois o violino foi meu primeiro instrumento. Eu o deixei na casa dos seus avós e seu pai o carregou na sua fuga.” Fiquei atônita, o violino pelo qual fui atraída desde a mais tenra infância era da minha mãe!?


Antes de me pedir para tocar, me mostrou um pequeno quarto naquele andar explicando ter reservado aquele espaço para quando eu precisasse de um refúgio. Aquilo me emocionou profundamente, ela havia pensado em mim. Não titubeei e concordei em apresentar uma nova música. Além de desejar agradá-la, estava ansiosa para testar o som de um violino de tão alta qualidade, como aquele.


Anne realmente expressava em seu semblante o quanto minha composição despertava seus sentimentos e seu fascínio evidente foi relevante para eu perceber uma mudança ainda mais significativa em nossa relação. Notei a profundidade do meu amor dedicado a ela. A descoberta proporcionou uma saudade do que nunca aconteceu entre nós no passado. Entretanto havia em mim uma certeza absoluta de termos uma vida pela frente para registrar recordações saudosas uma da outra.


No final da tarde me despedi dos meus pais, feliz pelo dia maravilhoso proporcionado por eles. Papai não me acompanhou, os dois parecem estar se acertando aos poucos. Estou ansiosa para vê-los definitivamente unidos. Esse é o meu sonho como filha: sentir o amor vibrar entre os meus pais!


Depois de alguns dias ruminando sobre meus sentimentos em relação ao Evandro, resolvi abrir-me com a Tânia. Contei sobre os sonhos e as sensações inquietantes com o toque e a aproximação do Art. Tão diferente das sensações serenas causadas pelo contato com o meu namorado, afinal em algum momento eu me senti inquieta com sua presença. Agora isso não acontecia mais.


Ela me olhou de um modo estranho, quase reprovador e disse: “Nem sempre choque e arrepio levam a um grande amor... Afinal, o Evandro tem sido um bom namorado, romântico, sempre te dando atenção e carinho. Sei o quanto você gosta da companhia dele. Mas estes sonhos me confundem também! Por que você não se aproxima mais do rapaz e tenta descobrir o que há por trás destes sonhos?”


Sua resposta me deixou apreensiva. Eu deveria conhecer melhor o Art se quisesse descobrir a verdade sobre a minha inquietação. Após a fala da minha amiga compreendi o motivo de tanta raiva, era uma defesa, eu sentia receio de uma aproximação, um medo intenso e profundo. Provavelmente só há uma saída para tanto medo: enfrentá-lo.


Foi assim durante todo o inverno, eu enfrentei o medo e descobri uma pessoa admirável, quase irreal ou surreal. Ele sempre parava para me ouvir tocar, por quase todo o meu ensaio. De certa forma eu ficava muito feliz só em saber o quanto a minha música era apreciada por ele.


Embora ele fizesse o curso de filosofia, passamos a estudar juntos. O loirinho entendia muito de música, conhecia os compositores clássicos e suas partituras. Ensinava-me seus métodos de memorização e facilitava o meu aprendizado. Ao invés de fazer seus próprios trabalhos, me ajudava com os meus.


Eu tinha inúmeras pesquisas sobre os músicos da renascença para fazer e muita dificuldade nesta etapa da história da música. Contudo ele sabia de cada detalhe da vida dos compositores mais relevantes e dos principais instrumentos, me ajudou a achar os livros certos e a entender alguns maneirismos da época sobre os quais eu sempre tive dúvidas antes até ouvir suas explicações.


Às vezes, para não me incomodar ficava atrás de mim, durante meus ensaios. Mesmo assim, eu realmente percebia a sua presença sem precisar olhar para trás, a sinergia entre nós era muito forte durante a música. Era incrível o quanto me sentia confiante com ele ao meu lado!


Art, apesar de aparentar ser um “nerd” e se vestir como um “mauricinho”, estava muito além dos rótulos revelados pela sua aparência. Sua personalidade superava os estereótipos registrados em seu exterior. Era uma pessoa extremamente humilde, gentil e amistosa, conquistou rapidamente a amizade de todos os moradores do alojamento. Diferente do Evandro que nunca se apressou a conhecer meus amigos.


Em algumas noites deste inverno, eu encontrei com minhas amigas no Três Pinheiros. Nós colocávamos nossos assuntos em dia, todavia eu sentia certa tensão da parte da Francisca. Alguma coisa estava errada, ela dava sinal de querer me contar algo, mas nunca terminava ou começava de fato. Eu ficava intrigada com suas falas contendo todo tipo de insinuações, no entanto retirava suas observações quando interrogada. Dizia estar apenas brincando.


Evandro volta e meia aparecia no final da noite para me buscar. E sempre olhava enviesado para a Fran. Só posso imaginar uma animosidade profunda entre os dois, talvez seja este o motivo de suas indiretas sobre ele. Meu namorado não perdia a oportunidade de me agarrar na frente delas e me dar um beijo ardente. Não compreendo o motivo deste tipo de demonstração de afeto, diante de minhas amigas.


Após me despedir das meninas, nós íamos a pé para o alojamento. Evandro continuou a dormir comigo praticamente todas as noites. Eu não podia reclamar de suas atenções. Ele estimula o meu corpo a corresponder suas carícias com paixão. Fazíamos amor de todas as formas possíveis e tive lições inimagináveis. Entre nós era sempre muito intenso e muito bom. Quando cedia ao sono, desejava abraçá-lo e sentir o calor do seu corpo junto ao meu.


Minha mãe me chamava para almoçarmos juntas, pelo menos uma vez durante a semana e eu aceitava. Eram muito agradáveis nossas tardes juntas. Em um destes almoços, eu resolvi perguntar sobre o amor. Afinal, ela e meu pai se amam desde a adolescência e continuaram se amando, apesar da longa separação. Eu queria saber mais, como reconhecer o verdadeiro amor, como ter certeza de estar realmente amando?


Era seu assunto favorito, ficou totalmente empolgada. Segundo Anne, não havia palavras para explicar seus sentimentos pelo meu pai. Ela o amava desde sempre, praticamente desde a primeira infância. Na adolescência, após um afastamento de alguns meses, quando o viu novamente teve certeza, reconheceu o amor pela pulsação e vibração de todo seu ser. Ficou sem fôlego e seu coração parecia querer saltar pela boca. E até hoje tem a mesma sensação quando está perto do Anacleto.


Eu sorri para ela, mas procurava comparar as sensações da Anne às minhas, ao ver o Evandro pela primeira vez. Não sei se foi assim, embora na época tenha sentindo algo intenso. Hoje, eu não me sinto sem fôlego, nem meu coração acelera quando o vejo. Vê-lo sempre me dá uma sensação de conforto e paz, embora muitas vezes me sinta incompreendida e desconfortável para compartilhar algumas de minhas experiências, especialmente com a música.


Nós passávamos horas tagarelando sobre a vida e muitas vezes seu mordomo vinha conversar conosco. Pude compreender a motivação da minha mãe para mantê-lo. Alfredo falava dela como de uma filha muito querida. Os dois tinham uma relação de amizade e companheirismo, quase de pai e filha. Ela ainda me segredou sobre ter muito medo de deixá-lo desamparado no futuro, pois ele não tem família alguma.


Eu saía de lá tarde da noite e não me arrependia. Agora eu tinha cada vez mais motivos para amar minha mãe. Ao me abraçar para se despedir, Anne sempre falava algo mais ou menos assim: “Seu pai não podia ter criado uma filha melhor, tenho muito orgulho de ser sua mãe. Nunca vou recuperar o tempo que nos mantivemos afastadas! Saiba, não passei um dia sem amá-la e sem pensar em como você estaria.” Eu me sentia confiante ao ouvir suas palavras embora nossos olhos ficassem marejados de lágrimas.


Para agradar o meu namorado, eu lhe preparava os mais diversos pratos. Ele me confidenciou o quanto sentia falta de comida japonesa, em Colina Formosa não havia nenhum restaurante japonês. Lembrei do meu primeiro almoço na casa de minha mãe e pedi a ela para me ensinar. Após algumas aulas práticas, pude preparar-lhe um jantar especial. Ele ficou encantado e me abraçou forte, sua felicidade me preencheu de júbilo.


Contudo ficou irritado com o Art, quando ele pegou um pouco também. Falando alto, quase berrando, me perguntou se “comedores de alface” podiam jantar sashimi. Obviamente ele não comeria o peixe cru, entretanto eu fiz diversos tipos de sushis e a maioria só levava frutas e vegetais. Eu comentei isso com ele, quando passou na cozinha enquanto eu preparava.


Evandro ficou muito incomodado com a presença dele e olhou para trás o tempo todo encarando o loirinho. A camaradagem inicial entre os dois havia desaparecido, agora o Art me evitava na presença do meu namorado. Havia uma animosidade entre eles, praticamente palpável. O ar chegava a ficar mais carregado e opressivo.


Todo aquele ressentimento se tornava um afrodisíaco para o Evandro. Em geral ele praticamente me carregava até o quarto. Deixando-me tonta com sua pressa e paixão, me beijando e tirando minhas roupas. Surpreendentemente, seu carinho para comigo aumenta a cada dia e após a paixão saciada pelos nossos corpos, me acomoda gentilmente envolvendo-me com seus braços até dormimos exaustos.


Fomos diversas vezes até a única boate de Colina Formosa. Nós dois gostávamos de dançar e nos divertíamos mais com este tipo de programa que qualquer outro. Até certa noite... Evandro parou no meio do salão de repente para me mostrar quem estava ali, parecia muito animado com sua presença e eu não entendi nada a princípio.


Quando levantei os olhos eu percebi o motivo de tanta alegria: O Art estava a nossa frente, beijando uma menina de no máximo 16 anos! Eu fiquei pasma, muda, rígida, meu corpo fervia de raiva, medo, indignação. Os sentimentos eram tantos e tão intensos... Não há como enumerá-los. No entanto eu não deveria sentir-me assim em relação àquela visão.


Meu namorado interrompeu meus pensamentos, comentando algo sobre irmos cumprimentá-los. Tive um acesso emocional, minhas mãos suavam frio, eu realmente não desejava aproximar-me. Não conseguia compreender o motivo do Evandro estar tão animado para falar com eles.


Olhei para eles novamente, repleta de receio e sentimentos conturbados. A menina demonstrava toda sua boa forma na pista, as pessoas ficaram a sua volta só para vê-la dançar. O Art, para minha surpresa, conseguia acompanhar o ritmo da garotinha e estava feliz por se exibir ao seu lado.


Evandro me puxou até eles, extremamente empolgado com toda a situação. Minhas emoções tumultuadas estavam no auge, a minha vontade era virar as costas para todos, voltar para casa, me enfiar debaixo das cobertas e chorar até cair de sono. Tentei estampar um sorriso no rosto e o acompanhei.


Meu namorado apertou a mão do loirinho, com entusiasmo e estranhei sua atitude. Enquanto os dois se cumprimentavam, Art sorria diretamente para mim. Fiquei irritada, eu o encontro beijando uma garotinha no meio da boate e ele ainda tinha a desfaçatez de me olhar como se eu fosse a única ali!


Se era para agir com falsidade, resolvi entrar no jogo e cumprimentei a menina. Ao ouvir meu nome ela disse: “Você é a Anita? O mano não para de falar de você! Sempre que vai lá em casa fala o quanto você é bonita, da sua música tão linda... Mamãe acha que ele está apaixonado por você!”


Quando escutei a palavra “mano” eu senti um enorme alívio! Uma onda de satisfação envolveu todo o meu ser: ela era uma de suas irmãs. Art havia comentado das duas irmããzinhas outro dia, falou de um jeito tão indulgente e eu as imaginei como duas crianças. Júlia era a mais velha e consegui conversar com ela de forma mais relaxada e natural.


Fiquei impressionada com a eloquência e a beleza da adolescente. Observei sua tez clara e rosada, as faces sardentas e os olhos azuis como os do irmão. Os cabelos em tom de mel e compridos eram muito bem penteados, estava perfeitamente maquiada para o ambiente noturno, suas unhas longas estavam tratadas e pintadas de pérola.


Encantei-me ainda mais quando ela comentou sobre eu ser ainda mais bela pessoalmente. Segundo Júlia, as descrições “acaloradas” do irmão não transcreviam toda a minha beleza. A pequena era muito sincera e não deixou de observar sobre a minha “brancura translúcida”, acrescentando o quando admirava minha tez perfeita e sem manchas de sol.


Eu afeiçoei-me rapidamente, adoraria ter uma irmã tão confiante, bonita e sincera. Acabei descobrindo durante nossa breve conversa o verdadeiro nome do Art. Júlia contou o motivo dele abreviar seu nome: “O mano acha muito forte o nome de um personagem tão conhecido e não quer ser comparado ao Rei Arthur.” Mal registrei a mensagem, quando Arthur, chamou a irmã. Era tarde para uma adolescente, eles deviam voltar para casa.


Eu me despedi dele com um beijo na face e percebi o Evandro olhar para nós com certo rancor. Não o levei a sério e insisti para voltarmos a dançar. Poderia ser tarde para a Julinha, mas para nós ainda estava muito cedo. Eu estava com muita vontade de liberar todas as tensões deste episódio. Dançar é o exercício perfeito para isto


Naquela noite eu queria dormir sozinha e dispensei a companhia do meu namorado afirmando estar muito cansada. Na verdade a preocupação com meus sentimentos em relação ao Art, assoberbavam a minha mente. Não parava de pensar sobre a enxurrada de emoções conflitantes despertadas por um beijo fraternal. Contudo ele insistiu dizendo preferir apenas dormir ao meu lado a ir para uma cama fria e solitária. Esta foi a segunda noite que apenas dormimos na mesma cama.