sábado, 18 de setembro de 2010

Quando Tudo Mudou...


Em sua introspecção, papai treinava exaustivamente em nossa sala, quando não estava “por aí”. Muitas vezes ele aproveitava o som do meu violino para executar novos passos de dança, criando um balé único e admirável com a minha sonata. E por alguns meses foi a única forma de comunicação entre nós.



Eu passei a tocar de olhos abertos para observar seu desempenho, e um dia me surpreendi. A mesma aura de luz a me envolver durante a execução da minha música o cingia, emprestando brilho aos seus passos, alumiando seu corpo. A alienação o envolvia radiosamente e era superior a minha, quando interpreto a melodia interior.



Não consegui prosseguir com a canção, contudo isso não o impediu de se manter em movimento, estava próximo a um desvario. Lembrei-me da fábula de Hans Christian Andersen, “Sapatinhos Vermelhos”. Minha percepção aguçada notava em seus pés sapatilhas vermelhas ao invés das usuais negras. Esta ilusão totalmente intuitiva aludia o conto.



A história fala sobre uma menina vaidosa apaixonada por seus sapatos vermelhos. Ao colocá-los passa a bailar belamente, aos poucos os sapatos tomam vida própria e a fazem dançar sem parar. Em seu sofrimento tenta arrancá-los de seus pés, porém não consegue. Para não morrer vencida pela fome e o cansaço, pede para que lhe amputem os pés. A moral trágica da fábula a torna uma velha pedinte sem amigos ou dinheiro.



Eu olhava com terror para o meu pai ao relembrar do conto. Procurei não me deixar envolver por pensamentos negativos e o medo... Entretanto não conseguia afastar a imagem das sapatilhas vermelhas surgindo em seus pés. Desejava acreditar ser apenas uma miragem, a representação de meus receios tomando forma a minha frente.



Naquele dia, papai interrompeu seus movimentos apenas para jantar. O aroma do salmão entrou por suas narinas e o acordou de seus devaneios. Foi quando observei: a comida era o melhor estímulo para tirá-lo do transe. Todas as noites eu utilizava o mesmo artifício.



Nas férias da primavera, – em qualquer outra parte do país seria verão, em Colina Formosa são dias de sol fraco, com chuvas esparsas e noites frescas, caracterizando uma extensão da primavera – meu pai raramente voltava para casa depois dos ensaios. Alguns dias, eu passava na biblioteca, outros eu ia observá-lo dançar e havia dias aos quais preferia ficar sozinha com meu violino.



Certo dia, papai voltou tarde, enquanto eu me preparava para dormir. Nem falou comigo, se encaminhou direto para geladeira, provavelmente faminto. Deitei incerta, tentava manter-me acordada para receber um beijo de boa noite, todavia ele não aconteceu. Vencida pelo sono mergulhei nos braços de Morpheus, o senhor dos sonhos.



Ao invés de belos sonhos, tive um pesadelo assustador, uma fumaça negra invadia toda a casa e eu mal conseguia respirar. O odor de comida queimada era devastador e me fazia tossir. Fiquei em dúvida se o cheiro acre era real, ou se ainda estava dormindo. Levantei-me da cama assustada.   



Papai estava dançando completamente absorto da fumaça a encobrir uma panela no fogão. Corri até ele para desligar o fogo antes de queimar a casa toda. A comida estava estragada, assim como a panela. Para nossa sorte eu acordei a tempo.


Levei-a bem próxima do meu pai e o chamei mostrando o estrago. Somente ao repetir o seu nome, ele finalmente olhou para mim. Ao despertar de seu transe, o pânico tomou conta da sua expressão. O ambiente inundado por uma fumaça negra, o utensílio em minha mão completamente queimado, assim como o alimento dentro dele, contribuíram para o deixar atordoado.



Sua maior preocupação era se eu estava bem, me abraçou com todas as suas forças se desculpando e chorando agarrado a mim. Dizendo o quanto ele se tornou um péssimo pai, me pedindo perdão ininterruptamente. Eu tentei tranquilizá-lo, detestava vê-lo tão assustado. Aos poucos ele foi se acalmando sem me soltar nem por um instante.



Eu me deixei levar por aquele abraço, triste pela ocasião, contudo me regozijava com o afago. Há muito eu o achava distante e poucos eram nossos momentos de carinho nos últimos meses. Sentia muita falta de poder me abandonar em seus braços. E mesmo sendo uma situação totalmente adversa, eu estava feliz por compartilhar novamente do seu afeto.



Ficamos absorvidos um pelo outro por um longo período. Papai me soltou apenas para falar do seu desejo de ser um pai melhor, da sua dificuldade de lidar com as decepções da vida, explicou sobre a dança o levar a um estado tão profundo de êxtase e o ajudar a esquecer completamente dos problemas.



Eu não sabia quais eram suas decepções e não me sentia a vontade para perguntar. Embora fossemos muito unidos, eu tinha vergonha e medo. Vergonha de ouvir sobre as mulheres com quem saía, medo de ser eu um dos seus problemas. Para mim, meu pai era um verdadeiro herói e eu estava muito longe de ser a filha perfeita. Então me calei e mais tarde me culpei por nunca ter questionado.



Quando finalmente se afastou, estava decidido a aproveitar as minhas últimas semanas de férias com uma viagem. Ligou para o aeroporto reservando passagens para uma Ilha paradisíaca no pacífico, para a tarde seguinte. Disse o quanto desejava levar-me para um lugar onde o sol brilhasse forte, como na cidade onde eu nasci. Onde eu poderia tomar banho de mar e ele se afastar da dança por uns dias.



Perguntei do trabalho, estava preocupada por papai abandonar o teatro sem dar satisfação. Contudo, ele me lembrou do festival de música programado para o início daquele final de semana e a Companhia de Dança não teria apresentações até o próximo mês. Ele poderia se ausentar, era só avisar o diretor da Companhia. Eu ansiei por aquele festival, mas com certeza preferia as férias ao seu lado.



No dia seguinte um táxi nos levou até o aeroporto mais próximo. Eu não entendia nada sobre passaportes e viagens de avião. Foi a minha primeira e me pergunto como ele conseguiu arranjar tudo tão depressa. Talvez em outro momento estivesse planejando levar-me para fora do país.



Papai só conseguiu vaga em um hotel de luxo na Ilha, e por isso economizamos nos passeios. Foram dias especiais mesmo assim. Ficávamos a maior parte da manhã na praia particular reservada aos hóspedes, nos divertindo ao tomar sol e ao mergulhar no mar. Ou simplesmente sentados à sombra, vendo as ondas lambendo a areia.



Na hora do almoço caminhávamos pelo movimentado calçadão e escolhíamos uma das barracas na praia para fazer nossa refeição. Depois passeávamos pelo lugar, conhecendo não só as praias, como todas as atrações turísticas.



Meu pai permanecia ao meu lado boa parte do tempo, contudo sempre aproveitava minhas distrações, com as novidades ao meu redor, para flertar com as belas jovens locais. Eu procurava relevar, afinal durante todos os dias se dedicava a mim e se esforçava para apagar de minha memória sua ausência nos últimos meses.



Algumas noites, eu acordava sozinha no quarto. Não era ingênua e sabia o motivo de sua ausência. Eu realmente vivi dias felizes ao seu lado na Ilha, apesar de suas saídas furtivas. Então fechava os olhos e me entregava aos braços de Morpheus até a manhã seguinte. Embora ele sumisse durante parte da madrugada, quando eu acordava seu sono era sereno na cama ao lado. Era o suficiente para mim.


Eu me levantava cedo e levava o meu violino para a varanda do hotel, tocava suavemente por uma hora ou duas. Procurava sincronizar o som com o das ondas na praia e me regozijava com a experiência única. Era interrompida apenas pelo seu chamado para fazermos o desjejum. Foram dias felizes e estão guardados com carinho em minha memória.



Quando voltamos para casa, meu pai parecia mais relaxado. Porém o retorno ao trabalho poderia novamente transportá-lo para aquele mundo de esquecimento e imersão. Tinha muito receio do que poderia acontecer ao recomeçar a dançar e notei sua apreensão quando me abraçou forte no seu primeiro dia de volta aos ensaios.



Pensei em detê-lo, pedir para ficar em casa e encontrar outra ocupação, talvez ampliando a sua horta. Entretanto não tive coragem para impedi-lo e este é mais um motivo para eu me sentir culpada, imaginando o que aconteceria se eu implorasse para não dançar mais.



Nos primeiros meses de nosso retorno, parecia tudo bem. Ele voltava para casa todos os dias após os ensaios. Sentava perto de mim na bancada da cozinha enquanto eu tocava apreciando o som do meu violino e jantava em casa todas as noites. Algumas vezes, ele saía após o jantar, contudo eu não perguntava aonde iria. Afinal, todas as manhãs ele estava ao meu lado na cama.



No entanto, ele estava viciado na sensação sublime ao bailar. Não mais o fazia apenas pelo prazer e o desejo de se tornar o primeiro bailarino da Companhia. Ele almejava pura e simplesmente se abandonar na dança e isso o afetou profundamente. Eu não suspeitava o quanto naquela época.



Uma semana antes das minhas férias escolares de inverno, imagino que a loucura da dança se infiltrou em meu pai, pois ele simplesmente não voltou para casa. Eu esperei por seu regresso, sentada no sofá até cair no sono. Acordei no meio da madrugada e resolvi ir para cama acreditando encontrá-lo ao meu lado ao acordar.



No entanto seu lugar à minha esquerda estava vazio quando acordei. Não era a primeira vez a acontecer, mesmo assim foi a primeira vez desde nossa viagem de férias e me preocupei. Eu não tinha muito a fazer na escola. Na realidade, já havia passado nas provas e as aulas agora eram apenas redundantes revisões, mesmo assim me obriguei a ir, para não me preocupar exageradamente com seu regresso.



Após a aula, resolvi conferir se papai estava ensaiando antes de voltar para casa. Encontrei o Reynaldo ao entrar no salão superior, onde aconteciam os ensaios. Ele estava muito surpreso ao me ver e perguntou sobre o meu pai, pois faltou os ensaios por dois dias seguidos, algo inédito durante aqueles cinco anos.



Eu fiquei arrasada e não falei nada. Simplesmente desatei a chorar. Reynaldo de forma gentil me abraçou e esperou meu pranto passar. Eu me agarrei àquele gesto afetuoso, percebendo não estar tão solitária quanto eu imaginava. E um sentimento totalmente arbitrário de felicidade preencheu meu ser, por encontrar um outro amigo além do papai.



Quando as lágrimas secaram, Reynaldo me convidou a sentar no sofá e perguntou o que estava havendo. Expliquei sobre o sumiço do meu pai e minha esperança de encontrá-lo ali. Preocupado comigo, comentou sobre as inúmeras mulheres com as quais papai saía, ele tinha o número de algumas e juntos começamos a ligar para elas.



Após várias ligações, nenhuma sabia dizer aonde meu pai se encontrava. A minha aflição aumentou e recebi um conselho de meu novo amigo o qual ouvi com atenção: “Seu pai me contou sobre sua bolsa para a Universidade. Por que não liga para lá e pergunta se ainda estão dispostos a te aceitar antes do término do ano letivo. Se for o caso, vá para a Universidade! Eu vou estar sempre por perto.”



Eu resisti para aceitar seu conselho. Esperei papai voltar por toda a semana e nada aconteceu. Desesperadamente mexia nas gavetas da cômoda, procurando por algum número de telefone esquecido. Quando encontrava corria ao telefone apenas para receber mais uma negativa.



Finalmente liguei para a Universidade e expliquei minha situação. Meu pai havia assinado os documentos de matrícula meses atrás, quando voltou de nossa viagem de férias. Foi quando percebi: ele previu sua deserção. Talvez seu sofrimento fosse mais profundo e intenso do que eu poderia suspeitar. Mesmo assim, procurou deixar-me amparada de alguma forma.



Eu não imaginava o quanto Reynaldo conversava com o papai. Ao notar a coincidência entre a fala de meu novo amigo e a previdência do meu pai em deixar minha documentação da Universidade pronta para o meu ingresso, descobri ser este o seu desejo, caso ele fracassasse.



Sem relutar, juntei as coisas mais importantes e fiz minha minhas malas. O diretor da Escola de Música havia arrumado uma vaga no alojamento para mim, teria um quarto só meu e dividiria as outras dependências com mais cinco companheiros. Reynaldo me ajudou a vender os móveis da casa e finalmente entreguei as chaves ao proprietário.



Papai não voltou na última hora, embora eu mantivesse alguma esperança nessa possibilidade. Eu gostaria de tê-lo abraçado mais forte em nosso último encontro. Falado o quanto eu o amava e da sua importância para mim... Tantas coisas se perderam nessa ausência, palavras não ditas, sentimentos destroçados, a mais completa e total desolação.



Eu completava dezessete anos e não sentia vontade alguma de comemorar. Estava decepcionada com papai, me sentia abandonada e desprezada. Apenas a presença de Reynaldo me ajudou a seguir em frente. Eu começaria uma nova etapa em minha vida, mas não me sentia feliz ou ansiosa por isso.

8 comentários:

  1. Quando tudo parecia estar indo tão bem o Anacleto some... ai,ai..
    Pelo menos ela foi pra Universidade, q bom que ela tem o Reynaldo pra ajuda-la com algumas providencias. Apesar de ter o final triste a atuh pelo menos chegou a parte da universidade. *--*

    Ahh... Eu reclamei da atuh passada, ms eu reclamo de tudo... nem leve em consideração... =/

    E sobre o autógrafo.. como diz aquele ditado... "antes uma esperança tarde do q um desengano cedo" aushauhsuahushsuah


    Bjoooos Mitaaaa!!!

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  2. Ahhhh!! esqueci de dizer sobre as fotos... lindas como sempre!! *-*

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  3. Essa parte é tão triste... =(
    Não consigo sequer me imaginar na mesma situação da Ani, eu não sei se sobreviveria... Qaunto ao Leto, prefiro não julgá-lo, tenho absoluta certeza que sua própria consciência o fará.

    Crescer e aprender com tudo que vivemos, tristezas ou alegrias, é que é importante...

    Apesar de triste, é claro que eu amei! S2

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  4. Oh que atuh triste! Ç.Ç Porque sumiu? Não compreendo! Eles se davam tão bem juntos! Anita deve ter sofrido tanto mesmo...
    Bem mas agora começa uma nova etapa, ela vai para a universidade! Estou com espectativas... Ainda bem que tinha Reybaldo para lhe emprestar o ombro :D

    Me pergunto para onde terá ido Anacleto... meteu-se aonde? suicidou-se? Não sei...

    Espero por mais! (mas a proxima é jornal nao é? kkkk)

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  5. Mergulhei totalmente na história.
    Foi tão bom, acho que passei a gostar de partes tristes.
    Me decepcionei com o pai da Anita.
    Acho que só tenho isso pra falar
    Foi perfeito.

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  6. Obrigada a todos por tudo: elogios, presença e amizade!

    Antes de mais nada, A Ani não sabe o que foi feito do pai. Ela só imagina que foi a loucura da dança a arrebatá-lo completamente. Acho que alguém que já foi até as últimas consequências por algo que deixou de ser uma paixão e se tornou um vício, entende o que estou falando... É algo que nos deixa fora de nós mesmos e arrebata-nos de tal forma que esquecemos todo o resto, esquecemos de viver.
    Por enquanto são só conjecturas.

    Deh,
    É como o olho do furacão. Quem está dentro parece tudo tranquilo e calma, mas a volta é uma tormenta só! Logo ela te suga para aquela loucura toda... Reynaldo é realmente um excelente amigo.
    Universidade... Mas ainda falta para aparecer o que você gosta! kkkkkkkkkkkkkkkkkkk
    Tá, quem sabe antes do que você imagina?

    Pah,
    Todos erramos e temos que conviver com nossos erros. Mas eu vejo tudo de uma outra forma nesta questão...
    Bem, a Ani está sobrevivendo. E qualquer um sobreviveria, cada um do seu jeito. Como disse a Deh, o Reynaldo estava ali para ampará-la. E ainda acho que de alguma forma este elo ser rompido, foi o melhor para ela.

    mmoedinhas,
    Realmente, acho que nem o próprio pai da Ani entende o que fez direito. Acho que quando alguém se suicida, deixa sempre algum alerta...
    Vamos ver como a Ani vai reagir a esta nova etapa, né?
    A próxima é revista de fofocas! rsrsrsrsrs
    Parece que as notícias estão perdidas... mas...

    Maikon!
    Este mergulho é muito importante para entender os sentimentos da Anita, mesmo os mais tristes.
    Sim, ele decepcionou a todos, principalmente a Anita.

    Mais uma vez, obrigada!
    bjosmil *.*

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  7. Tadinha da Ani, de repente a única pessoa que ela confiava e amava, sumiu... sorte dela ter o Reynaldo num momento como este, nem posso imaginar o que seria dela se não tivesse alguém para ajudá-la, tão menina ainda. :(
    Mas são nessas tiradas da vida que vem o nosso maior aprendizado.
    Lindona, foi perfeito e amo sempre... s2

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  8. É... Muito triste qundo perdemos ou somos abandonados por quem amamos. Mas a perda sempre nos fortalece e nos faz ter uma nova perspectiva de vida. Por sorte teve alguém para ajudá-la quando precisou e esteve aberta para aceitar ajuda.
    Obrigada flor!
    bjosmil! *.*

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